O que a Ditadura nos deixou

O que a Ditadura nos deixou

Texto: Salomão Farias, diretor

Segundo as tradições, 01 de abril é conhecido como o “Dia da Mentira”. As explicações remontam ao século XVI, quando os festejos relativos ao ano novo eram feitos entre os dias 25 de março e 1º de abril.

Por determinação do Rei Carlos IX, da França, instituiu-se o calendário gregoriano, que adotava como primeiro dia do ano o 1 de janeiro. Parte da população resistiu à mudança e manteve a comemoração na data anterior, passando a ser conhecidos como “os bobos de abril”.

Para nós, brasileiros, essa data é bastante simbólica e interessante. Um dos famosos casos ligados a data é atribuído ao Jornal “A Mentira” que noticiou a morte do Imperador Pedro II em 1848, precisando desmentir o fato depois, sob alegação de ser apenas uma “brincadeira” correspondente a data. De qualquer maneira, o fato que nos leva a reavivar esta lenda reservada no ano de 1964.

Getúlio Vargas cometeu suicídio em agosto de 1954.

Uma grande turbulência política tomou conta do Brasil desde o suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954. Muitos alegam que ali GV conseguiu retardar o desejo de parte da conservadora elite brasileira de destituir um projeto de governo que permitia consideráveis avanços às classes menos favorecidas – que pode ser simbolizado com os direitos trabalhistas e as propostas de Reformas de Base de Jango. E instaurar um projeto alinhado com os EUA que privilegiasse os setores tradicionais detentores da riqueza do país e que detivesse o crescimento dos partidos de orientação socialistas que cresciam no Brasil.

O clima nos próximos dez anos foi determinado por essas visões contraditórias. João Goulart representou bem esse momento, assumindo o poder por duas vezes nesse prazo. Enfrentou a resistência da classe média conservadora e dos militares, que o viam como uma ameaça à Democracia e acreditavam que apenas “uma revolução purificaria a democracia, pondo fim à luta de classes, ao poder dos Sindicatos e aos perigos do Comunismo” (Boris Fausto, História do Brasil).

João Goulart.

Após a renúncia de Jânio Quadros essa situação se intensificou e escancarou a luta para definir um “Projeto para o Brasil”: de um lado a esquerda propondo um modelo nacionalista, com a possibilidade de uma diversificação da produção para geração de empregos, com atenção à crise do campo e preocupada com a diminuição das desigualdades sociais; e de outro, um modelo com perspectivas de uma liberalismo ortodoxo, porém com manutenção de subsídios à produção e práticas protecionistas e apostas no “legalismo” para a solução de conflitos sociais.

E é sobre esse cenário que o véu cai.

A burguesia brasileira desta época sempre se expressou a favor da existência de um Executivo Forte. Defendia que a Democracia só poderia acontecer de modo satisfatório em países economicamente desenvolvidos, mas, evitavam falar abertamente sobre sua preferência por um Regime Ditatorial, controlado pelos militares.

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Observando esse “vazio de poder” e os acontecimentos da época, especialmente o “Comício da Central”, em 13 de março, e a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em 19 de março, a cúpula militar de tendência conservadora passou a arquitetar sua chegada ao poder.

Com a anuência da burguesia, de industriais, proprietários de terra, apoio norte-americano e um incidente dentro da própria caserna, o caso de insubordinação dos marinheiros que se reuniram no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro para reivindicar melhores condições aos marinheiros; o Clube Militar, na figura do General Olímpio Mourão Filho, que já havia se envolvido no sombrio episódio do Plano Cohen, em 1937, apoiado pelo governador Magalhães Pinto, iniciou uma mobilização de tropas em Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro com o objetivo de destituir o presidente João Goulart.

Na região do Vale do Paraíba, comandados pelo General Amauri Kruel, tropas se deslocavam em direção ao Rio de Janeiro, onde se confraternizariam com os demais conspiradores. E esse movimento explica nossa mais notória farsa do “Primeiro de Abril”, como citado no início do texto.

João Goulart sai de Brasília em direção ao Rio Grande do Sul em 1º de abril. O Senado declara vago o cargo de presidente da República, assumindo o poder o presidente da Câmara Ranieli Mazzili. Nesse momento o poder já não está mais nas mãos de civis e sim dos comandantes militares.

Se não houve “Golpe” como os conspiradores alegam, o episódio relatado entra no campo das ilusões do Dia da Mentira, visto que o cargo da presidência só se tornou vago em 1º de abril, não em 31 de março como insistem em “comemorar”. 

O golpe se justifica pela quebra da ordem constitucional, como é comum na História brasileira. O confronto político civil foi abreviado por uma ação de conspiradores que representavam a voz da população que se intitulava patriotas e “direitas”, que queriam o fim da corrupção e o do Comunismo.

Matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo.

Foram 21 anos de dura e violenta repressão: perseguição a líderes políticos de oposição, sindicalistas, representantes do movimento estudantil, ausência de liberdades democráticas, censura aos meios de comunicação e propagação da cultura, sequestro de pessoas, fim do direito de defesa, execução sumária dos críticos ao Regime, abandonos aos programas sociais por parte do Estado, entre outras coisas que sabemos e outras que jamais poderemos comprovar, dado o nível de organização das forças armadas e seus apoiadores.

Tivemos um avanço da dívida externa, subordinação ao capital estrangeiro, superfaturamento na aquisição de produtos, especialmente vindos dos Estados Unidos, desvio de funções, abuso de autoridade, enriquecimento de empreiteiras em obras pelo mundo, especialmente na África, entre outros problemas.

Podemos destacar dois casos famosos de corrupção e mal uso do dinheiro público nessa época: o caso Lutfalla, envolvendo empréstimo de dinheiro do BNDES a empresa em situação de falência do empresário Paulo Maluf, que tinha bom trânsito entre os generais; e o caso Delfin, que envolvia a quebra do grupo “Coroa Brastel”, que contou com desvio de dinheiro da Caixa Econômica Federal intermediado pelo então Ministro Delfin Neto e por Ernani Galveas, escândalos de amplo conhecimento popular.

Não é que os casos não fossem investigados; registram-se cerca de 1.100 processos instaurados pelo Comissão Geral de Investigações, órgão criado para investigar e impedir corrupção, mas apenas 99 deles chegaram a algum termo.

Enfim, o período citado é recheado de problemas como conhecemos e por que então ele é frequentemente lembrado e os saudosistas o evocam com certa regularidade?

Recentemente levamos ao poder um grupo, liderado por Jair Bolsonaro, que enfaticamente nega a existência da Ditadura, e utiliza como argumento para arrebanhar simpatizantes o fim da corrupção, do Comunismo, o resgate dos bons costumes, discurso semelhante ao usado em 1964.

Mourão enaltece a data em sua conta no Twitter.

Uma Ditadura se notabiliza pelo uso da violência e da repressão aos opositores. Como isso pode ser melhor que a liberdade de expressão e pensamento? Usar o princípio da negação histórica para proteger sua preferência e opinião é no mínimo um egoísmo e uma falta de conhecimento da realidade histórica.

Não podemos calar as vozes que pretendem discutir esse momento. Os alemães não se orgulham do Nazismo, mas não se furtam de revisitá-lo, discuti-lo e inclusive utilizar seus instrumentos mais cruéis, como os campos de concentração, para demonstrar o tamanho do estrago que os seres humanos podem causar sob pretexto de afirmar suas narrativas históricas.

O Estado Democrático de Direito tem seus problemas, porém exterminá-lo não é o método mais correto de correção para suas vicissitudes. Precisamos aprimorá-lo na prática cotidiana, observando seus equívocos, como ele pode colaborar para a melhoria da sociedade e preservar seus organismos de sustentação.

Aceitar e enaltecer a Ditadura é um desrespeito aos que morreram em decorrência dela, de ambos os lados, e demonstrar nossa imaturidade e incapacidade de gerir as situações decorrentes da divergência de opiniões.

Mesmo que a Ditadura Militar brasileira tivesse sido o sucesso que os “simpatizantes” defendem, não teria valido a pena… foi uma Ditadura, retirou do homem o seu bem mais precioso: a liberdade.

Temos, sim, que lamentar o fato de 50 anos depois vozes ainda recorrerem a este tempo tão sombrio como forma de solucionar nossos problemas. Não se pode esquecer que naquele tempo o clamor popular referendou a ação militar; hoje estamos alimentando um “monstro” parecido com  anuência e reconhecimento de todos por meio do sufrágio universal: não há Golpe!

Aquela mesma burguesia que sustentou o Golpe Militar parece ter ressuscitado e ter admitido ser parte integral desse processo preocupante.

A Ditadura estabelecida no país não nos ensinou o que é viver em um país livre de corrupção, moralmente exemplar, ético, que trabalhou para o fim das desigualdades e pela harmonia entre as classes; ensinou, sim, o  que é tortura, assassinato político, censura, exílio…. os problemas que levaram a ela estão ai, resistiram e continuam existindo e só um belo aprendizado sobre a Democracia pode permitir que encontremos soluções para resolvê-los. Não é o nome do regime que torna os problemas menores ou inexistentes.

Não podemos referendar nenhuma Ditadura. Pensar sobre as visões de Platão e Aristóteles a despeito do tema pode nos ajudar a amadurecer: “é mais útil ser governado pelo melhor dos homens ou pela melhor das Leis?”; “Onde a lei está submetida aos governantes e privada de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade…”; “a lei não tem paixões, que ao contrário se encontram necessariamente em cada alma humana”…

Refletir sobre essas questões e colaborar para manter vivo o regime que privilegia a liberdade humana e nosso livre arbítrio, afinal…

“Detendo o poder e certo da impunidade, o homem se sente deus entre os homens”.

Para aqueles que têm a liberdade como valor: Ditadura nunca mais! Ou viveremos permanentemente no Dia da Mentira.

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3 comentários sobre “O que a Ditadura nos deixou

  1. be legal abrir essa reflexão sobre o golpe de 64. Principlamente quando sabermos que é a foramção, a educação, a liberdade de cátedra que permitira, e assegurará, a indispensável formação para a cosntrução e a prática da democracia.
    Como forma de dar as bases sociais par a sustentação do golpe, institui-se o ensino obrigt´rorio de OSPB, Organização Social e Política Brasileira, que às vezes é lembrada também com saudosismo. Nós, educadores comprometidos com a ciência, a democracia, com a reduçõ da desigualdade social temos a obrigação de, em todas disciplinas, incorporar os elementos cintéificos, metodológicos e sociais pafa mostrar, sempre, o outro lado.
    Valeu, professor!

  2. Bolsonaro é o pai da ignorância e fruto de uma população com mentalidade retrógrada, inculta e atrasada em todos os sentidos. Com o buraco que tem na cara que acha que é boca, fechada o transforma em um grande poeta.

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